Arbitragem e o Self-Restraint do Judiciário

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Um dos assuntos mais controvertidos atualmente é a vinculação (ou não) dos árbitros aos precedentes judiciais.[1]
Estão os árbitros obrigados a respeitar os precedentes do art. 927 do CPC/15?[2] E se não respeitarem, cabe a ação anulatória do art. 33 da Lei de Arbitragem?
A controvérsia – considerada um “falso problema”[3] – está longe de ser dirimida e exigiria uma obra específica a respeito[4].
De certo modo, essa insegurança jurídica[5] reaviva a constante preocupação acerca do (descabido) controle do mérito arbitral pelo Judiciário.
Como se sabe, o ente estatal, salvo algumas exceções legalmente previstas (arts. 32 e 33 da Lei de Arbitragem), não pode servir como instância revisora dos procedimentos arbitrais, sob pena de esvaziar a própria potencialidade da via arbitral.
Até porque, em que pese a maior autonomia das partes no procedimento arbitral, não se pode perder de vista que a arbitragem é um meio adjudicatório de resolução de conflitos, que compõe um sistema único de jurisdição[6] cuja engrenagem não pode funcionar de forma desarmoniosa.
Com efeito, o exercício jurisdicional não é exclusivo do Poder Judiciário[7]. Logo, é fundamental que haja uma equilibrada simbiose na relação entre Judiciário e Juízo Arbitral.
Como bem destaca CAHALI, “a convivência entre a jurisdição estatal e arbitral sempre foi e continuará sendo fundamental ao desenvolvimento da arbitragem”[8], devendo o Judiciário exercer seu papel de conciliador interinstitucional[9].
Nesse contexto, é preciso consolidar a cultura de uma intervenção judicial mínima na arbitragem.
Assim, compete ao Judiciário, por exemplo, respeitar o princípio competência-competência[10], se eximindo de apreciar conflitos quando houver convenção de arbitragem pactuada pelas partes (com exceção das questões urgentes, sendo que, mesmo nessa hipótese, deve ser verificada a existência de árbitro de emergência). Havendo convenção de arbitragem, deverá o magistrado extinguir o processo sem resolução de mérito, especialmente quando o árbitro já tiver reconhecido a sua competência (art. 485, VII, do CPC/15).
Trata-se de entendimento, há muito, consolidado[11], mas que precisa ser sempre reafirmado.
Da mesma forma, não deve o Judiciário criar barreiras indevidas para o cumprimento de cartas arbitrais.
Nesse sistema de checks and balances, a intervenção do Judiciário no procedimento arbitral só deve ocorrer diante de expressa previsão legal (ação judicial prevista no art. 7º da Lei de Arbitragem para a celebração de compromisso arbitral; concessão de tutelas de urgência, na forma do art. 22-A; cumprimento de cartas arbitrais; execução de sentença arbitral; homologação de sentença arbitral estrangeira; ação anulatória do art. 33 da Lei nº 9.307/96, etc.), ou quando a participação do ente estatal não violar diretamente a competência do árbitro e a jurisdição arbitral[12].
É preciso compreender que o sistema jurisdicional, embora único, possui funções complementares. Não há uma relação de concorrência, mas sim de cooperação entre a arbitragem e o Judiciário. Também não há hierarquia ou qualquer tipo de subordinação, pois os poderes dos juízes e dos árbitros não são idênticos, assim como suas atribuições.
Nesse contexto, o ente estatal deve exercer o judicial self-restraint,[13] valorizando, sempre que possível, a competência do árbitro e não se imiscuindo no mérito da sentença arbitral (salvo quando cabível a ação anulatória do art. 33 da Lei de Arbitragem), mas, por outro lado, não pode permitir ilegalidades[14] e violação às garantias fundamentais[15].
Notas e Referências
[1] No Brasil, ainda não existe um banco de dados de decisões arbitrais. Logo, não faz muito sentido discutir, por ora, a vinculação dos árbitros aos precedentes arbitrais. Como explicam Daniel Brantes e Bianca Farias, fazendo referência à Câmara Nacional de Resolução de Conflitos (CRND), espécie de Câmara Arbitral criada pela CBF para questões envolvendo esporte, “a única área da arbitragem, no Brasil, que possui potencial de desenvolver precedentes arbitrais é a área desportiva, uma vez que o regulamento da CNRD, em seu art. 38, ao tratar da confidencialidade, permite a publicação integral ou parcial de decisões que entender de interesse geral do mercado, omitindo os nomes e qualificações das partes. O § 4º do art. 38 do regulamento também torna o conteúdo das sentenças arbitrais acessível por terceiros com quem mantenha relação de colaboração (…)”. FERREIRA, Daniel Brantes; FARIAS, Bianca Oliveira de. A arbitragem e o precedente arbitral e judicial – uma análise histórica e comparativa entre Brasil e EUA. Revista Brasileira de Direito Processual, v. 102, 2018, p. 171. Vale citar também o “Ementário de sentenças arbitrais” disponibilizado pela Câmara de Arbitragem do Mercado (CAM). Disponível em http://www.b3.com.br/pt_br/b3/qualificacao-e-governanca/camara-de-arbitragem-do-mercado-cam/ementario/. Acesso em: 23.03.2019.
[2] Não adentraremos na discussão sobre a existência de um “sistema de precedentes” no direito brasileiro. Também não examinaremos a constitucionalidade ou não do art. 927 do CPC/15, por não ter decorrido de emenda constitucional. Da mesma forma, não analisaremos as diferentes correntes doutrinárias que divergem sobre a força e a natureza das decisões listadas no referido art. 927.
[3] CRUZ E TUCCI, José Rogério. Os árbitros não são estouvados! (sobre as jornadas de Direito Processual Civil). Disponível em https://www.conjur.com.br/2018-ago-28/paradoxo-corte-arbitros-nao-sao-estouvados-jornadas-direito-processual-civil. Acesso em: 20.02.2019. De acordo com o doutrinador, “toda esta discussão faria realmente sentido se, na prática, os árbitros se recusassem, de forma deliberada e com alguma frequência, a invocar precedentes, vinculantes ou não, no momento em que tivessem de elaborar a ratio decidendi, vale dizer, a fundamentação da sentença arbitral. A propósito, ouso perguntar se algum profissional do Direito, no ambiente ainda restrito da arbitragem, já esteve diante de uma sentença arbitral na qual consignado que os árbitros signatários, de comum acordo, deixavam de seguir determinado precedente porque considerado injusto ou equivocado? Alguém já se deparou com sentença arbitral, na qual, por exemplo, o tribunal arbitral desconsiderou a orientação consolidada no Superior Tribunal de Justiça de que o prazo prescricional para o exercício da pretensão à reparação dos danos causados por fato do produto ou do serviço flui a partir da ciência inequívoca pela vítima dos efeitos do ato lesivo? (…) Conclui-se, pois, que, sob o prisma da praxe arbitral, o debate acerca da questão acima suscitada deixa de ter maior relevância, sobretudo se considerarmos um importante aspecto: a qualidade, a formação e a experiência da esmagadora maioria dos nossos árbitros, que, além de todos esses predicados, têm de ultrapassar duplo escrutínio: das partes e da respectiva câmara!”.
[4] A propósito, AMARAL, Guilherme Rizzo. Judicial Precedent and Arbitration: are Arbitrators Bound by Judicial Precedent? London: Wildy, Simmonds & Hill, 2017.
[5] Para Erika Napoleão, deve-se “assegurar o respeito às decisões arbitrais e manutenção de seu crescente prestígio, sem que isso implique na subtração de garantias fundamentais do indivíduo, que configurarão o norte dos limites da atuação judicial neste âmbito. Com efeito, a sistematização desse controle não só protege a jurisdição arbitral de interferências indevidas por parte do Judiciário, como também possibilita certa segurança àqueles que pretendem escolher esse meio alternativo de solução de conflitos; pois saberão prever e considerar as possibilidades passíveis de ocorrência.” RÊGO, Erika Napoleão do. Impugnação das sentenças parciais e decisões interlocutórias do juízo arbitral perante o poder judiciário – possibilidades e limites. In: CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro; GRECO, Leonardo; PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. (Orgs.) Temas controvertidos na arbitragem à luz do Código de Processo Civil de 2015. Rio de Janeiro: GZ, 2018, p. 71.
[6] PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Jurisdição e Pacificação. Curitiba: CRV, 2017.
[7] “In definitiva, il principio del monopolio statuale della giurisdizione si è vistosamente sgretolato: la giurisdizione non è più esclusiva funzione dello Stato”. PICARDI, Nicola. La giurisdizione all’alba del terzo millennio. Milano: Giuffrè, 2007, p. 53.
[8] Na visão do doutrinador, “esse regime de cooperação ou apoio aparece sob diversas formas, desde a ação para instituição da arbitragem através do compromisso arbitral (em razão de clausula compromissória vazia – art. 7.º da Lei 9.307/1996), até o processo de invalidação de sentença arbitral (interferência de controle e supervisão, não de apoio à arbitragem), passando pela indicação de árbitro substituto, homologação de sentença arbitral estrangeira, execução da sentença arbitral, e pela cooperação do Poder Judiciário ao desenvolvimento da arbitragem.” CAHALI, Francisco José. Curso de Arbitragem: mediação, conciliação e Resolução CNJ 125/10. 6. ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 311.
[9] TAKAHASHI, Bruno. Desequilíbrio de poder e conciliação. Brasília: Gazeta Jurídica, 2016, p. 188.
[10] “A sentença arbitral produz entre as partes envolvidas os mesmos efeitos da sentença judicial e, se condenatória, constitui título executivo. Além disso, tão somente após a sua superveniência é possível a atuação do Poder Judiciário para anulá-la, nos termos dos artigos 31, 32 e 33 da Lei n. 9.307/1996. (…) Consigne-se, além disso, que vige, na jurisdição privada, o princípio basilar do kompetenz-kompetenz, consagrado nos artigos 8º e 20 da Lei de Arbitragem, que estabelece ser o próprio árbitro quem decide, em prioridade com relação ao juiz togado, a respeito de sua competência para avaliar a existência, validade ou eficácia do contrato que contém a cláusula compromissória. A partir dessa premissa, o juízo arbitral se revela o competente para analisar sua própria competência para a solução da controvérsia. Negar aplicação à convenção de arbitragem significa, em última análise, violar o princípio da autonomia da vontade das partes e a presunção de idoneidade da própria arbitragem, gerando insegurança jurídica.” REsp 1.550.260-RS, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. para acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 20/03/2018.
[11] “É de se reconhecer a inobservância do art. 8º da Lei n. 9.307/1996, que confere ao Juízo arbitral a medida de competência mínima, veiculada no Princípio da Komptenz Komptenz, cabendo-lhe, assim, deliberar sobre a sua competência, precedentemente a qualquer outro órgão julgador, imiscuindo-se, para tal propósito, sobre as questões relativas à existência, à validade e à eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória”. STJ, CC 146.939/PA, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Segunda Seção, DJe 30.11.2016.
[12] MAZZOLA, Marcelo; TORRES, Rodrigo. A produção antecipada da prova no Judiciário viola o juízo arbitral e a competência do árbitro? In: FUGA, Bruno Augusto Sampaio; RODRIGUES, Daniel Conalgo; ANTUNES, Thiago Caversan. Produção antecipada da prova – questões relevantes e aspectos polêmicos. Londrina: Thoth, 2018, pp. 337-347.
[13] Como explica Victor Dutra, “a expressão judicial self-restraint foi preconizada pelo Chief Justice Stone, quando proferiu o seu voto dissidente no caso da United States v. Butler, em 1936. Trata-se do fenômeno da autocontenção judicial, que, embora não possua uma definição precisa e admita menos sentidos de conduta em relação ao ativismo judicial, também comporta diferentes significados.” DUTRA, Victor Barbosa. Precedentes vinculantes – contraditório efetivo e técnicas repetitivas. Belo Horizonte: D´Placido, 2018, p.132.
[14] “A tendência internacional e que tem sido acompanhado pelo Poder Judiciário Brasileiro é a do controle efetivo, pautado nos corretos ditames da legalidade estrita, sem preconceitos individuais, sem cometimento de arbitrariedades.” PITOMBO, Eleonora Coelho. Arbitragem e o Poder Judiciário: aspectos relevantes. In: GUILHERME, Luiz Fernando (Coord.). Aspectos práticos da arbitragem. São Paulo: Quartier Latin, 2006, pp.108-109.
[15] Em arbitragem envolvendo ente público, que, a rigor, deve respeitar o princípio da publicidade (art. 2º, 3º, da Lei de Arbitragem), a instituição arbitral negou o requerimento de terceiro para ter acesso às cópias do procedimento arbitral. Em vista disso, o interessado solicitou ao Juiz que oficiasse a referida instituição arbitral remetendo as cópias, o que foi deferido. (Processo 0072675-60.2017.8.19.0001, 37ª Vara Cível da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro, decisão proferida em 30.08.2018).
Por Marcelo Mazzola
Fonte: Empório do Direito – 01/05/2019
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